Amanheceu. E eu, na doce ilusão de minha última idade, também amanheci dentro de mim. Chegou a hora do café. A doce, santa e indefectível Luciana dispôs algumas iguarias à mesa. De repente, tiros. Tiros e mais tiros. Grito, vozes altas. Meu Deus, nosso prédio deve estar sendo assaltado. Dentro de mim, nas várias capas da cebola que eu sou, a agonia fez o resto. Luciana, na lucidez de sua paz, buscou me acalmar, dizendo.
– Fique tranquilo, é uma simulação...
– Simulação de quê, criatura? Pelo amor de Deus, tudo indica que nosso prédio está sendo assaltado.
A última idade que habita em mim completou a obra. Pensei em descer até a portaria, mas fui assolado por visões apocalípticas. Me vi rendido por bandidos perigosos, me obrigando a transferir o restinho de minha minguada e humilhante aposentadoria para uma conta deles. Cheguei até a sentir golpes de coronhadas.
Fui até à varanda. Lá embaixo, a rua latejava indiferente, mas vozes altas continuavam clamando, não sei de onde, de que parte do edifício. Finalmente, resolvi. Me entreguei à sorte e à morte, tomei o elevador. A porta se abriu e vi: a portaria era uma calma só. Segurando os solavancos do coração, o ofegar da respiração, caminhei para a portaria. Aí, se se deu a notícia trágica:
– Bom dia, Néri!
E Néri, todo alegre, solícito e cerimonioso:
– Bom dia, professor. Alguma coisa?
– Ô, Néri, ouvi um barulho de tiros, uma gritaria. Sabe dizer o que foi?
Aí, deu-se o desencanto. Néri abaixou a voz e, quase sussurrando, disse:
– É aqui professor. Simulação...
– Que diabo é isso Néri? Estou com o coração na mão...
– É gente da faculdade. Tem um que mora aqui e estão fazendo de conta que é um júri. Começou com um assassinato aqui, na porta do prédio. Agora, estão no play-ground julgando o assassino.
Voltei para o ap e fiz a única coisa que sei: sentei-me ao computador para escrever. Mas escrever o quê, meu Deus, se apenas sei que a simulação está substituindo o real e o desairoso está substituindo o admirável, na escala dos valores sociais? Agora, a simulação tem mais valor que o real; o certo está errado e o errado está certo.
O pior: o preço dos remédios disparou. E depois de qualquer susto, para quem se permitiu habitar pela última idade, anti-hipertensivos e assemelhados custam caro. E já se sabe: susto e choque disparam todos os indicadores de quem cresceu acreditando na felicidade do admirável mundo novo; na consideração aos idosos. Seria tão fácil terem avisado aos velhos e às velhas que o destino juntou nesse nosso condomínio.
– Fique tranquilo, é uma simulação...
– Simulação de quê, criatura? Pelo amor de Deus, tudo indica que nosso prédio está sendo assaltado.
A última idade que habita em mim completou a obra. Pensei em descer até a portaria, mas fui assolado por visões apocalípticas. Me vi rendido por bandidos perigosos, me obrigando a transferir o restinho de minha minguada e humilhante aposentadoria para uma conta deles. Cheguei até a sentir golpes de coronhadas.
Fui até à varanda. Lá embaixo, a rua latejava indiferente, mas vozes altas continuavam clamando, não sei de onde, de que parte do edifício. Finalmente, resolvi. Me entreguei à sorte e à morte, tomei o elevador. A porta se abriu e vi: a portaria era uma calma só. Segurando os solavancos do coração, o ofegar da respiração, caminhei para a portaria. Aí, se se deu a notícia trágica:
– Bom dia, Néri!
E Néri, todo alegre, solícito e cerimonioso:
– Bom dia, professor. Alguma coisa?
– Ô, Néri, ouvi um barulho de tiros, uma gritaria. Sabe dizer o que foi?
Aí, deu-se o desencanto. Néri abaixou a voz e, quase sussurrando, disse:
– É aqui professor. Simulação...
– Que diabo é isso Néri? Estou com o coração na mão...
– É gente da faculdade. Tem um que mora aqui e estão fazendo de conta que é um júri. Começou com um assassinato aqui, na porta do prédio. Agora, estão no play-ground julgando o assassino.
Voltei para o ap e fiz a única coisa que sei: sentei-me ao computador para escrever. Mas escrever o quê, meu Deus, se apenas sei que a simulação está substituindo o real e o desairoso está substituindo o admirável, na escala dos valores sociais? Agora, a simulação tem mais valor que o real; o certo está errado e o errado está certo.
O pior: o preço dos remédios disparou. E depois de qualquer susto, para quem se permitiu habitar pela última idade, anti-hipertensivos e assemelhados custam caro. E já se sabe: susto e choque disparam todos os indicadores de quem cresceu acreditando na felicidade do admirável mundo novo; na consideração aos idosos. Seria tão fácil terem avisado aos velhos e às velhas que o destino juntou nesse nosso condomínio.
Ruy Póvoas/904
13/5/2025
Sobre o autor:
Ruy do Carmo Póvoas (1943) nasceu em Ilhéus. A partir de 1970, fixou residência em Itabuna, onde fundou o Ilê Axé Ijexá, terreiro de candomblé de origem nagô, de nação Ijexá, no qual exerce a função de babalorixá. É licenciado em Letras pela antiga Faculdade de Filosofia de Itabuna e Mestre em Letras Vernáculas (UFRJ). Ruy tem publicado: Vocabulário da paixão, A linguagem do candomblé, Itan dos mais-velhos, Itan de boca a ouvido, A fala do santo, VersoREverso, Da porteira para fora, A memória do feminino no candomblé, Mejigã e o contexto da escravidão, A viagem de Orixalá, Novos dizeres e Representações do escondido. Ocupa a cadeira 18 da Academia de Letras de Ilhéus e é membro fundador da Academia de Letras de Itabuna.
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